A representação da deficiência em tempos de pandemiaPor Lilia Martins

Num momento em que o Brasil chega a um número inconcebível de mortes pela Covid19, verifica-se que tal índice atinge proporções gigantescas, não só pela letalidade contida neste agressor invisível e destruidor, como também por ações governamentais dúbias, confusas e improcedentes, gerando crises em relação à área de saúde. Com isso, as recomendações em relação ao isolamento social, para conter a expansão da pandemia, foram minimizadas, trazendo o risco de novas contaminações. Com o aumento verificado do número de pessoas atingidas pelo Coronavirus, houve, consequentemente, uma sobrecarga de atendimentos para as Unidades de Saúde, ampliando a demanda para uma equipe de saúde já insuficiente para a demanda considerada.

Este é um breve relato do que está acontecendo no Brasil em tempos de pandemia, resultando na análise crítica sobre os governantes brasileiros que, de uma forma ou de outra, investiram muito pouco em áreas básicas, como saúde, saneamento, educação, habitação, transporte e emprego, para ampliar a qualidade de vida das pessoas de baixa renda.

E dentro do contexto apresentado, como se encontram as pessoas com deficiência?

Houve, de início, uma tomada de posição de várias entidades e organizações de pessoas com deficiência e seus familiares, para a confecção de cartilhas contendo as recomendações de higienização corporal e de objetos de uso pessoal, no controle da contaminação com o vírus.

As cartilhas foram direcionadas para diversas áreas da deficiência, incluindo noções básicas para crianças com deficiências em geral, e crianças ou jovens com deficiência intelectual e do espectro autista, e seus familiares. Tais recomendações consideraram os equipamentos utilizados pelas pessoas, como a cadeira de rodas, muletas ou bengalas e próteses.

A preocupação maior residia na forma como as pessoas com deficiência, consideradas de risco, como os idosos, seriam atendidas sem uma preparação prévia da equipe de saúde, para questões específicas sobre a deficiência. E esta prática consideramos essencial, em se tratando da gravidade dos casos, em uma complexa rede de saúde. No caso da deficiência, muitos profissionais não conhecem as particularidades de cada caso, dificultando a relação com aquele paciente.

Muitas condições secundárias ou disfunções ocorrem em diversas deficiências, acarretando insuficiência respiratória importante, dores, contrações involuntárias, reflexos corporais incontrolados, dificuldade na verbalização e na compreensão.

Citaríamos também as questões que envolvem as pessoas surdas e as cegas ou com baixa visão, que possuem dispositivos especiais para sua comunicação e informação, que não são do conhecimento geral.

Mesmo a LIBRAS, Língua Brasileira de Sinais, utilizada pela maioria dos surdos, não é conhecida pela maioria das pessoas.

E mais ainda, como seria o relacionamento da equipe de saúde com os pacientes com deficiência, numa condição de isolamento social, com impedimento do acesso de parentes ou acompanhantes, não só para aliviar tensões, como também para servir de intérprete na comunicação. Muitas pessoas fragilizadas pela doença seriam levadas a um enorme estresse emocional, muitas vezes não contido por dificuldades da equipe em compreendê-los. A falta de acompanhantes seria uma condição extremamente delicada no caso específico de algumas crianças ou jovens com deficiência intelectual, ou mesmo do espectro autista.

Frente a questões de tal seriedade, algumas iniciativas foram tomadas, inclusive de parlamentares, protocolando medidas, como exemplo, para tornar obrigatória a elaboração de planos emergenciais de proteção aos segmentos mais vulneráveis da população e proibir a adoção de regras que permitam preterir, em relação a outros pacientes, as pessoas destes segmentos.

E em outra medida protocolada, admitir que acompanhantes possam estar com pessoas com deficiência intelectual e do espectro autista.

Sem dúvida alguma, temos que louvar a equipe de saúde que está à frente deste enorme investimento, correndo o risco de contaminação, como várias vezes já ocorreu, levando esta angústia para si mesma e seus familiares.

O impacto sobre suas vidas nem sempre vai permitir uma atitude totalmente isenta de dúvidas ou incertezas, ou até de desconhecimento, como é previsível no caso de pessoas com deficiência. No entanto, que represente o melhor que pode ser feito em um determinado momento,

dentro de uma turbulência institucional.

Cabe-lhes o compromisso com a vida, e vários revelam a profunda mágoa por terem visto um paciente escapar-lhe das mãos. É-lhes profundamente frustrante o fato de não saírem vencedores numa disputa entre vida e morte. E talvez este seja mesmo um embate em que as peças estão lançadas, sem controle para os envolvidos.

Em relação às pessoas com deficiência há uma série de desafios nesta relação a portas fechadas, numa Unidade de Tratamento Intensivo.

Entre as questões que podemos observar e que desejamos ressaltar neste trabalho é que a pessoa com deficiência é uma pessoa, antes de sua deficiência. E uma pessoa, sob os impedimentos que decorrem de sua deficiência, que deseja, como qualquer outra pessoa, ser respeitada, compreendida em suas várias formas de se expressar, ter o direito de conhecer os procedimentos a que está sujeita, mesmo que sua compreensão seja colocada em dúvida. De um modo muito particular, ela vai entender e até responder de modo a ser compreendida. Ou mesmo que permaneça em silêncio, ou sem possibilidade de se comunicar, como no caso de estar presa a um respirador, por exemplo, ter a presença de um profissional da equipe é importante, para o estabelecimento de um vínculo, mesmo que à distância.

É natural que a pessoa internada esteja numa condição de impotência, frente a uma situação emergencial, onde toda a equipe está voltada para a urgência dos atendimentos. É preciso ressaltar a importância desta pessoa em manter-se ativa mentalmente neste processo, ao experimentar, mesmo que minimamente, um certo controle da realidade. Buscar uma referência para apropriar-se de uma identidade, é saudável na medida em que a pessoa está tentando dominar um espaço desconhecido, que lhe causa angústia.

Será sempre importante tentar uma aproximação, usando meios de comunicação simples, como escrever ou fazer gestos para uma pessoa surda. Ou mesmo permitir que a pessoa leve algum objeto pessoal que funcione como um meio de proteção e segurança.

Dentro do possível, permitir a presença de um acompanhante para os casos específicos de pessoas com redução sensível de movimentos ou pessoas com deficiência intelectual e autistas.

Em nenhuma das pontas deste embate, isto é, pessoas com deficiência e profissionais de saúde, haverá respostas prontas para uma pandemia que transcende qualquer outra forma de acontecimento. Estamos ainda surpresos e perplexos com a gravidade do fenômeno, que nos leva a reflexões sobre a forma como sustentar nossa humanidade frente a todo esse desafio. E a reposta, me parece, acontece dentro de um cenário de perdas, mas emergindo em torno da vida que vem de tantas pessoas que venceram a Covid 19. E também da equipe de saúde que em meio a tantos relatos, sempre volta ao local de trabalho, com a esperança renovada de salvar vidas.

* Artigo publicado no livro DIÁLOGOS SOBRE ACESSIBILIDADE, INCLUSÃO E DISTANCIAMENTO SOCIAL: TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS NA PANDEMIA. Esta é uma iniciativa do IdeiaSUS, sob a coordenação da Presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com o Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão de Pessoas com Deficiência, o Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (DIHS/Ensp/Fiocruz) e a Universidade Federal de Goiás (UFG). A publicação, lançada em meio à pandemia de Covid-19, reside na necessidade de olharmos com atenção para as vulnerabilidades das pessoas com deficiências.




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