Em busca dessa regalia cresce a fila da deficiência

 

Por José Carlos Morais

“Também comprei um carro com isenção”, disse-me uma amiga que havia sido tratada para um câncer de mama. “Como assim”? Indaguei com surpresa. “Você não sabia? Agora também temos direito”. Tentei explicar o motivo da Lei e a razão da sua existência. Mas não tive paciência. Se dispusesse de tempo e serenidade teria muito a lhe dizer. Com certeza, começaria pelo histórico. Por favor, Madame X, preste a atenção.

A primeira Lei surgiu nos idos de 1965, de número 4.613. Isentou de impostos, pela primeira vez, os paraplégicos e pessoas portadoras de defeitos físicos. Não se surpreenda, mas já fomos chamados assim. Ela permitiu importar veículos com câmbio automático, desde que estivessem impossibilitados de utilizar os modelos comuns.

Vinte anos depois a lei complementar 53, de 1986, concedeu isenção de ICM para a compra de veículos para as mesmas pessoas incapazes de dirigir um carro convencional e ressaltou que estes deveriam possuir características especiais, como transmissão automática e controles manuais.

O parecer que acompanha essa Lei para justificar a isenção é de uma clareza admirável.  “Sem condições de utilizar-se dos veículos convencionais. Impedido de locomover-se fisicamente, o deficiente se vê limitado no desenvolvimento e desempenho de suas potencialidades. Devido a essas dificuldades, praticamente, não tem acesso ao mercado de trabalho. As consequências são evidentes: priva-se o deficiente físico de meios indispensáveis para sua sobrevivência e realização pessoal, como também deixa o País de contar com o concurso de importante força de trabalho, num momento em que necessita mobilizar todos os recursos de que dispõe para o desenvolvimento nacional”.

Perceba minha amiga e tente assimilar qual foi a ideia. Ao facilitar a locomoção da pessoa com deficiência física, ela criava a oportunidade de inseri-la no mercado de trabalho. Assim, produtiva esse indivíduo geraria renda e pagaria impostos, que justificaria a isenção fiscal recebida. Ficou claro?

Em 1995, a Lei 8.989 estende o benefício além das pessoas portadoras de deficiência física. Foram contemplados os portadores de deficiência visual, mental severa ou profunda, ou autista, diretamente ou por intermédio de seu representante legal. Nada mais justo. Esse grupo está fora de nossa discussão. Em relação à pessoa portadora de deficiência física, a Lei define como sendo aquela que apresenta alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções. 

Em 2009, a Lei 11.941 prorroga a 8.989 até final de 2014. Entretanto, a interpretação de deficiência física se ampliou de tal maneira que hoje a lista de doenças que permitem o benefício da Lei passa de quarenta. Não vou lhe enumerar a lista de barbaridades, mas a sua está incluída.

Não são as doenças que dão direito ao benefício e sim as sequelas que elas produzem.

Já deu para perceber o quanto você está errada? Vou lhe dizer mais. Se me fosse dado o direito de redigir leis em relação à deficiência física, seria muito objetivo, teria como base o parecer de 1986. Nos fictícios artigos constaria que o direito a dispensa de impostos seria dado somente aos indivíduos, cujas sequelas motoras de membros inferiores, avaliado através de rigoroso exame médico, o impedissem de usar os meios de transporte convencionais. Seria permitido à aquisição de carros mecânicos ou automáticos, com limite de cilindradas e cujo valor de mercado não ultrapassassem a um teto no valor de um carro popular.

Meu propósito seria impedir a solicitação absurda com base em uma lista de doenças que nada significa em relação a sua incapacidade. Não são as doenças que dão direito ao benefício e sim as sequelas que elas produzem. E qual a sua sequela? Eu sei que é nenhuma. Talvez nesse momento minha amiga ficasse indignada, virasse as costas e fosse embora. Mas entendam, não estou falando em tom agressivo. Leiam minhas palavras de modo afável. Por isso, aposto que ficaria e assim poderia prosseguir na defesa da minha lei.

Também teria, com isso, a intenção de estimular às montadoras a desenvolver automóveis mais baratos que atendessem a população que realmente necessite destas isenções, tanto carros mecânicos adaptados de fábrica ou carros automáticos. Assim inibiríamos essa busca desenfreada por carros de luxo por indivíduos que, na realidade, não tem uma sequela que justifique a compra. Desculpe, mas é exatamente o seu caso.

Terminado o diálogo imaginário, tenho certeza que poderia ouvir uma dessas respostas, que me cansei de escutar nesses 33 anos da legislação vigente. “Se a Lei me concede porque não utilizar? Não vou dar dinheiro para um governo corrupto. Os impostos são muito altos no Brasil. Todos fazem. O mesmo carro fora do Brasil é a metade do preço. É o único jeito que tenho para ter carro automático. Gosto de levar vantagem em tudo. Certo”?

E assim caminhamos nós. Como já disse em outra crônica, num time que ninguém queria ser escalado, hoje faz fila para entrar. Vai entender!




Os comentários estão fechados.