Por Rosângela Berman

Aos 18 anos, em Outubro de 1976 no Rio de Janeiro, recebi em plena adolescência, minha nova condição – e papel social – de pessoa com deficiência. Poucos meses depois, internada num centro de reabilitação, renasci como uma jovem tetraplégica e iniciei uma nova vida cheia de descobrimentos pessoais, caminhos desconhecidos a desbravar e aventuras inesquecíveis que me transformaram na pessoa que sou hoje.

Um capítulo muito especial dessa humilde caminhada e que comento agora, mais de 40 anos depois, se passa no contexto do Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro (CVI-Rio), fundado em dezembro de 1988. Esse capítulo surgiu em consequência de acontecimentos anteriores que contribuíram para a história de luta das pessoas com deficiência no Brasil. Por isso não poderia falar dos 30 anos do CVI-Rio sem tocar em fatos e personagens que determinaram o seu nascimento e o impacto que causou e causa até hoje na minha própria vida, no Brasil e no mundo.

O lugar era a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), mas a oportunidade era o CLAM/ABBR (Clube de Amigos da ABBR), onde conheci e formei meu primeiro círculo de pares e novos amigos que me acompanham até hoje numa fantástica história de vida. Lilia Pinto Martins, Flávio Wolf, Sheila Salgado, José Carlos Morais, Celso Lima, Izabel Maior, Maria Paula Teperino, Carmen Galassi, Paulo Roberto Guimarães Moreira, Maruf e Elaine Aride,  e alguns outros que sempre estarão próximos, ainda que fisicamente distantes. No CLAM/ABBR, como aprendizes de feiticeiro (no caso, o Fidélis Bueno), começamos a nos engajar num ativismo ainda limitado aos muros do centro de reabilitação: por melhores condições de alojamento, privacidade e alimentação, mais liberdade para a prática do esporte e para a socialização, mais independência para tomar decisões, incluindo as de escapar à noite para o drive-in na Lagoa ou algum bar em Copacabana.

Em 1977, a Lilia, psicóloga da ABBR e uma liderança importante no CLAM, propõe a criação da ADEFERJ (Associação dos Deficientes Físicos do Rio de Janeiro), para que ampliássemos nosso espaço de intervenção e pudéssemos lutar por nossos direitos num Brasil que vivia uma ditadura militar em que diferentes coletivos sociais se posicionavam para trazer de volta a democracia e os direitos humanos. Todos seguiram a liderança da Lilia rumo à criação da nova associação, mesmo porque já havíamos sido “cordialmente” convidados a nos retirar do CLAM/ABBR por distúrbio à ordem institucional (ao bom estilo das instituições da época). Na ADEFERJ, contando com a participação a mais de Flávio Wollf, Silvia Cosac e Maria Paula Teperino, começamos um ativismo em níveis estadual e nacional, documentado pelo Jornal “O Caminho”, que nos levou a um importante protagonismo junto as mais visíveis entidades de pessoas com deficiência do Brasil.

Embora a prática fosse de que cada grupo se organizasse separadamente, nessa época no Rio nós já trabalhávamos em conjunto com grupos de outras deficiências com quem crescemos juntos no ativismo social e político. Os principais líderes eram o Mauricio Zeni e o Hercen Hildebrand (cegos do Instituto Benjamin Constant-IBC) e a Ana Regina Campello (surda do Instituto Nacional de Educação dos Surdos – INES). Lembro-me com profundas saudades da caminhada pelas Diretas Já, dos shows do Circo Voador, das reuniões no MAM e do IBASE (já com o Betinho de volta), os encontros na Câmara Municipal e na ALERJ, com tantos outros movimentos pela inclusão social e pela democracia, que sempre acabavam no Amarelinho da Cinelândia. Sim, nós também estávamos lá – orgulhosamente organizados e atuantes. Nessas alturas, Beth Caetano já dançava nos palcos da vida e ainda continua trazendo arte e beleza às nossas memórias.

Na continuidade, em 1981 (Ano Internacional da ONU para as Pessoas com Deficiência – AIPD), o mesmo grupo, já acrescido de outros companheiros de todo o país (como Messias Tavarez– PE, Claudio Vereza-ES, a Heloísa Chagas-PR, o Romeu Kazumi Sassaki-SP, entre muitos outros,) fundamos a ONEDEF (Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos). Naquela fase fundamental para o crescimento do Movimento no Brasil, o nosso Jornal Etapa documentou o florescimento de mais de 130 novas associações em todo o território nacional, enquanto o país ingressava no processo de “abertura” e de anistia aos exilados políticos – importantes líderes que voltariam a nos inspirar a seguir lutando por nossos direitos.

Assim como a ONEDEF (deficiência motora), após o Ano Internacional, surgiram as federações nacionais de pessoas com deficiências visual, auditiva, hanseníase, paralisia cerebral, além das associações de pais e prestadores de serviço na área de deficiência intelectual/mental, chamadas entidades para.   Com toda essa nova estrutura que pululava aos quatro cantos do país e já com “cada macaco (organizado) no seu galho”, em 1983, surgiu de maneira meio forçada (ou teórica), num espírito mais de desconfiança que de colaboração, a já não tão bem sucedida Coalizão Nacional de Entidades de Deficientes que seguiu atuando sem muita expressão até meados dos anos 80, chegando a contribuir positivamente para a visibilidade dos direitos do segmento na Assembleia Nacional Constituinte que levou à atual Constituição Brasileira.

Em 1988, a ONEDEF e o movimento nacional começaram a passar por sua primeira crise, de lideranças, de paradigmas, de práticas, o que nos levou a uma parada para avaliação e reflexão. Depois de muitos anos de militância (muito efetiva e prazerosa) em tempo integral, o tesão tinha passado, e a ressaca tinha gosto de desilusão.  Algo de novo no front era preciso. O que seria?

Nessa época, como ativista e jornalista, fui convidada a fazer um intercâmbio pelos Companheiros das Américas, uma entidade Norte-Americana que estabelece parcerias entre estados dos EUA e de outras partes do mundo. No caso, Rio de Janeiro e Maryland. Foi nesse intercâmbio que conhecí a Judy Heumann, fundadora do primeiro Centro de Vida Independente, em Berkeley, Califórnia. Na época, Judy me recebeu na casa de seus pais em Nova York e me convidou para acompanhá-la numa marcha nacional histórica em Washington, DC, pela adoção do American with Disabilities’ Act, a primeira Lei Nacional de Direitos das Pessoas com Deficiência em todo o mundo.  Ali, debaixo de chuva e iluminados por milhares de velas que cada participante empunhava solidariamente (poderiam ser flores ou espadas), conheci os militantes que fizeram daquele país o primeiro a reconhecer os direitos humanos dessa parcela da população. Ali, pessoas com todos os tipos de deficiência, seus familiares e aliados, heróis-veteranos de tantas guerras, sobreviventes de HIV/AIDS entre outros grupos, eram um só e em uma só voz, pediam ao Congresso e ao Presidente Bush (pai), para que o ADA fosse firmado e adotado.

Depois, fui conhecer meu primeiro centro de vida independente, em Arlington, Virginia e participei de um Congresso do Conselho Nacional de Vida Independente (NCIL) com centenas de CVI’s de todo o país, em Bethesda, Maryland. Assisti a grupos de deficientes LGBTQ e outras minorias buscando espaço para defender seus direitos, fiz contato com militantes cadeirantes que se acorrentavam nas rodas de caminhões para protestar contra a falta de moradia acessível, soube de ralis nacionais por legislação em anti-discriminação, conheci ícones daquela sociedade, tanto republicanos como democratas, lutando lado a lado por uma causa comum.  No Brasil, esse tipo de respeito mútuo e de solidariedade andavam em baixa…

A essas alturas, eu já me havia apaixonado pelo conceito, que se baseava no direito às pessoas com deficiência de fazer escolhas, de tomar decisões sobre suas vidas, com autonomia pessoal, mesmo que utilizassem o apoio de terceiros para realizar tarefas ou desempenhar funções na sua vida diária, por  limitações de sua deficiência. Voltei ao Brasil entusiasmada com aquela proposta. Imediatamente nos reunimos, Lilia, Sheila Salgado e eu e decidimos propor a criação do primeiro Centro de Vida Independente do Brasil. Quatro meses depois, juntos – os mesmos parceiros do CLAM/ABBR e da ADEFERJ (listados nos primeiros parágrafos dessa história), convocamos uma Assembleia de Fundação, pelo Diário Oficial da União e, com estatutos em punho, criamos a entidade no dia 14 de dezembro de 1988. Assim, o CVI-RJ (hoje CVI-Rio) se tornaria um novo modelo de entidade que combinaria inovação, ativismo, informação, serviços de apoio ao indivíduo e à comunidade, com vistas à promoção da emancipação pessoal e da plena participação social, sob a liderança de pessoas com deficiência.

Na mesma época, fui nomeada membro da Ashoka, uma fundação internacional de empreendedores sociais e, com isso, recebemos os primeiros recursos financeiros para erguer o CVI-Rio e apoiar outros grupos interessados pelo Brasil. Alugamos uma casa no subúrbio do Rio, contratamos uma secretária e fomos construindo nosso espaço devagarzinho. Pouco tempo depois, a partir de nossos contatos com o Prof. Ripper na PUC Rio, conseguimos uma sala meio clandestina nos “porões” da Universidade. Então, uma nova parceria com o Rotary Club, nos permitiu adquirir uns contêineres bastante danificados, que após um ano de intensos reparos no estacionamento da PUC, se transformaram, pelas mãos talentosas da nossa Arquiteta Verônica Camisão, na mais charmosa sede (de baixo custo e ainda clandestina) já vista em todos os tempos!

Como parte da nossa tradição, criamos o Jornal SuperAção*, que ajudaria a anunciar as boas novas, e difundir o conceito (tropical) de Vida Independente, além de apoiar e documentar o crescimento de um novo Movimento Nacional, que chegou a reunir 22 Centros por todo o país. Neste ponto, com todos os CVIs existentes, fundamos o Conselho Nacional dos Centros de Vida Independente do Brasil (CVI-Brasil), para prestar apoio e incentivar a criação de novos CVIs, dentro dos princípios norteadores do movimento de vida independente.

O CVI Rio organizou eventos como o DEF’Rio 92 e 95 e iniciou uma era de inovações na maneira de se construir um mundo para todos e todas. A partir da criação destes e novos eventos, ao longo de nossa trajetória, contamos com a promotora de eventos Constança Carvalho, que muito contribuiu para o sucesso de tais eventos.

Expandindo o movimento para a Região Inter-Americana, em 1999 foi fundado com minha coordenação O Instituto Interamericano sobre Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo (IIDI), para promover a inclusão e a autonomia das pessoas com limitações funcionais

Trinta anos depois, ainda estamos aqui, contando essa história de tantas conquistas. Para relembrar ou conhecer, basta ao leitor virar as páginas deste livro que contém um pouco da vida de cada um de nós e de muitos outros que foram tocados pelo mesmo compromisso e a mesma paixão em servir, em fazer mais e melhor pelo seu semelhante.

Escrevo hoje, no dia 2 de Outubro de 2018, eleições nacionais, esperando que esses tipos de sentimentos sigam contaminando um a um entre cada brasileiro, na construção de um Brasil melhor para todos e todas, indiscriminadamente.




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